I. Comecei o dia com a ressaca do outro. Acordei mais tarde do que queria e mais cedo do que o corpo pedia. Comecei o dia desorientada, empurrada por um telefone que não parava de tocar e uma campainha aos gritos me atordoava. Foi como se quisesse parar um mundo que gira irredutível, rebelar-me contra as regras impostas e os horários dominantes. Pensei que, pelo menos durante uma semana, ia ter todo o tempo do mundo. Mas já percebi que o mundo não tem tempo para mim.
II. Arrastei-me pelas horas que fluem sem pedir licença. Aos solavancos, cumpri alguns dos objectivos triviais a que me tinha proposto. Ter de fazer isto, ter de ir ali, ter de... Até o tempo chamado "livre"tem destas coisas. São as responsabilidades de uma maturidade forçada que se impõem.
III.Terminei o dia dilacerada. Não pela vulgaridade dos afazeres. Não por ter os olhos meio fechados, meio abertos, anestesiada pelo cansaço acumulado e elevado por uma marotana de trabalho até às 4 da manhã. Terminei o dia desfeita por dentro porque, com alguma culpa, eu sei, me vi privada do pouco que me alimenta a alma e faz feliz o coração. Faltou-me um sorriso, uma atenção, um singelo sinal de apreço ou quase afecto de quem não espero mais do que uma bagatela. Vivo em silêncio este sentimento velado ainda sem nome, sem definição. Escondo-me quando me quero mostrar. Afasto-me quando o que mais quero é aproximar-me. Baixo os olhos em vez de encarar. Engulo as palavras em vez de as soltar. E com esta inércia oscilo entre os extremos: um estado de graça sem paralelo que serve de escudo aos contratempos diários; o desalento de quem sucumbe às contingências da transparência que não domina e que torna os pés mais presos ao chão.
Imagem: detalhe de A persistência da Memória (1931), quadro de Salvador Dalí
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