Friday, February 29, 2008

love-you-shirt
- Quem amas?
-Não sei.
- Não sabes?
- Não.
- Não?
- Não. Posso até sentir algo por alguém que ainda não consigo explicar.
- Hummmm
- Posso mesmo ter sentimentos por pessoas diferentes, mais do que uma, pessoas que me dizem alguma coisa, pessoas que me deixaram marca.
- Sentimentos?
- Sim, sei lá, carinho, raiva, aversão, paixão, ternura, curiosidade, vontade de conhecer melhor, tudo à mistura.
- Ah...
- Os platonismos vivem da fantasia, da contemplação, baseiam-se em pressupostos errados porque distantes do objecto. Um sentimento, qualquer que seja, pode surgir sem se saber como, mas para ter nome, para pertencer à categoria dos afectos tem de ser relacional; tem de ganhar peso, substância, mas isso só acontece se houver contacto directo com o outro envolvido, se saudavelmente houver tempo e espaço para conhecer o outro e as nuances da personalidade e deixar que o outro nos conheça também.

Thursday, February 28, 2008

salvador_dali
28.02.2008 Fragmentos


I. Comecei o dia com a ressaca do outro. Acordei mais tarde do que queria e mais cedo do que o corpo pedia. Comecei o dia desorientada, empurrada por um telefone que não parava de tocar e uma campainha aos gritos me atordoava. Foi como se quisesse parar um mundo que gira irredutível, rebelar-me contra as regras impostas e os horários dominantes. Pensei que, pelo menos durante uma semana, ia ter todo o tempo do mundo. Mas já percebi que o mundo não tem tempo para mim.

II. Arrastei-me pelas horas que fluem sem pedir licença. Aos solavancos, cumpri alguns dos objectivos triviais a que me tinha proposto. Ter de fazer isto, ter de ir ali, ter de... Até o tempo chamado "livre"tem destas coisas. São as responsabilidades de uma maturidade forçada que se impõem.

III.Terminei o dia dilacerada. Não pela vulgaridade dos afazeres. Não por ter os olhos meio fechados, meio abertos, anestesiada pelo cansaço acumulado e elevado por uma marotana de trabalho até às 4 da manhã. Terminei o dia desfeita por dentro porque, com alguma culpa, eu sei, me vi privada do pouco que me alimenta a alma e faz feliz o coração. Faltou-me um sorriso, uma atenção, um singelo sinal de apreço ou quase afecto de quem não espero mais do que uma bagatela. Vivo em silêncio este sentimento velado ainda sem nome, sem definição. Escondo-me quando me quero mostrar. Afasto-me quando o que mais quero é aproximar-me. Baixo os olhos em vez de encarar. Engulo as palavras em vez de as soltar. E com esta inércia oscilo entre os extremos: um estado de graça sem paralelo que serve de escudo aos contratempos diários; o desalento de quem sucumbe às contingências da transparência que não domina e que torna os pés mais presos ao chão.

Imagem: detalhe de A persistência da Memória (1931), quadro de Salvador Dalí

Tuesday, February 26, 2008

Without_You_by_swishy_fresh


Talvez Fevereiro seja o mês do Amor. Talvez depois da chuva diluviana sonhe com dias longos, quentes e iluminados. Talvez não haja lógica nenhuma. Apeteceu-me ir buscar esta canção ao baú.

Adoro-a. Oiço-a sem parar. As vezes que me apetecer.

Gosto da força escondida na tristeza do poema. De simples e planas, as palavras tornam-se volumosas, potentes, com a textura própria de quem reconhece a grandeza do sentimento mas se resigna, melancólico, aos entraves da vida. É a inconfundível alma portuguesa, arrebatadora, mas que não sabe viver sem o peso do fado.

Como se a felicidade nunca estivesse completa. Como se o Amor perfeito não exista sem o seu quê de transgressão. Como se fosse o Amor retraído, separado, condenado, proibido, vivido em silêncio, sofrido, o maior e o mais valoroso.

Amália escreveu o fado e gravou-o em 1983. O V Império apresentou a versão ligeira em Tribute to Amália (2004), Kátia Guerreiro incluíu-o no seu trabalho de 2006.

Amor de fel, amor de mel
Tenho um amor
Que não posso confessar...
Mas posso chorar
Amor pecado, amor de amor
Amor de mel, amor de flor,
Amor de fel, amor maior,
Amor amado!

Refrão :
Tenho um amor
Amor de dor, amor maior,
Amor chorado em tom menor
Em tom menor, maior o Fado!
Choro a chorar
Tornando maior o mar
Não posso deixar de amar
O meu amor em pecado!

Foi andorinha
Que chegou na Primavera,
Eu era quem era!
Amor pecado, amor de amor,
Amor de mel, amor de flor,
Amor de fel, amor maior,
Amor amado!

Refrão

Fado maior
Cantado em tom de menor
Chorando o amor de dor
Dor d'um bem e mal amado!

Versão V Império
Fado Kátia Guerreiro

Foto encontrada
aqui

Wednesday, February 13, 2008

flr153
Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra.A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra.A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.


Texto de Miguel Esteves Cardoso, publicado no Jornal Expresso em Novembro de 2005.